Memorial
A hora-ruim, do meio-dia. A sexta, o demo à solta no mundo, hora de recolhimento e rezação. Apeamos. No outrora-um-pátio, entrada de grande casa, fazenda antiga das de fama, sobrado perobal. Imaginando dava para ouvir os bois, na azáfama dos dias idos, o café cheiroso, a sofrida escravaria, o alambique suando sua cachaça. Assentados no batente de pedra preta preparamos o fogo, esquentar o feijão da jornada a ser longa, rumo do São Gonçalo. Nem não ouvimos os passos descalços, felinos rudes, do ancião que nos chegou por entre as moitas de gravatá e erva-cidreira no antes-quintal...
In: COSTA, José Mauro da (org.) Mulheres. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2014. pp. 143-149.
In: COSTA, José Mauro da (org.) Mulheres. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2014. pp. 143-149.

Cansado, o velho professor assentou-se sobre a mesa do seu gabinete. Terminara de recolher os últimos de uma grande variedade de objetos que adornavam a sala onde, por muitos anos, criara projetos, preparara aulas, recebera alunos e colegas em seu intenso mister. Olhava as paredes agora desnudas, as caixas de livros, o violão antigo – presente do pai sertanejo – acomodado carinhosamente em uma grande bolsa, comprada na Europa em uma de suas tournées. Caminhou em direção à janela, que dava para o mar. Chegara o momento tantas vezes adiado de dizer adeus ao velho gabinete, à biblioteca que tanto amava, às salas de aula onde amadureceram seus sonhos, onde se apaixonara e onde tantas vezes se esquecera de tudo e de todos em longas horas de abstração ao som do piano, de violões e flautas em embates mágicos...
Joãozinho voltou para casa radiante. Custou
a dormir, pensando na nova amiguinha. A lua, que arranjou um jeitinho de entrar
por uma fresta no telhado, naquela noite nem chamou sua atenção, ele que era
seu melhor amiguinho. Quando finalmente adormeceu sonhou com sereias e sacis,
com abelhas e favos de mel, que eram os olhos de Luana, de voz doce como as das
sereias das histórias que papai contava, de pele negra como a sua, macia como
pétala de rosa.(...)
Excertos de A menina na Cadeira. Ilustrações de Juliana Buli. Belo Horizonte: Crisálida, 2011.
Um dia
Amani acordou com uma gritaria no meio da noite. Estava escuro e sua irmãzinha
chorava muito, parecia estar com muito medo. Ele levantou-se para ver o que era
e viu um monte de gente desconhecida espalhada pela aldeia. Estavam vestidos e
pintados para a guerra, de cara fechada. Tiravam as pessoas de suas casas,
outros pegavam as coisas de valor. Amani já ouvira falar deles, eram ladrões!
Alguns deles entraram em sua casa e levaram sua mãe e sua irmãzinha. Um outro o
pegou pelo braço e levou-o para perto da fogueira. Pegaram sua irmãzinha e a
entregaram para uma das vovós da aldeia, depois mandaram os outros fazerem uma
fila, amarraram todos com uma corda e começaram a caminhar. (...)
Amani. Ilustrações de Juliana Buli. Belo Horizonte: ComArte,
2010.
Piedade*
As montanhas que me
encerram
Nestas terras de fome e
fé
Em trilhas escoam o
cansaço
Em grotas gotejam os
sonhares
De quantos por lá se
vão
E em silêncio observam
minh’alma nas sombras
A padecer razões...
*In: V Prêmio Literário Canon de Poesia 2012, São Paulo,Scortecci, 2013.
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